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A prática farmacêutica e médica, na Europa do século XVII e até meados do século XVIII, ficou marcada não somente por avanços científicos e pela organização das profissões relacionadas com a arte curativa, mas também pelo reforço de tradições e práticas medievais de cura. Por este motivo esta época ficou conhecida por “barroco médico”, na qual quer as doutrinas clássicas quer as inovadoras contribuíram para um pano de fundo complexo que constituiu a farmácia do século XVII – XVIII [1]. Durante este período o arsenal terapêutico era constituído pela conjugação de métodos tradicionais - como as purgas, sangrias e clisteres - de métodos mágico-religiosos - como os amuletos, as defumações ou as partes de corpo humano e de animais – e de métodos inovadores que, à altura, incluíam as plantas medicinais, os medicamentos químicos, as águas medicinais e as chamadas “drogas americanas”, plantas medicinais oriundas do continente americano.

As Farmacopeias – evolução e relevância histórica

Por meio destas obras as nações europeias tentaram estabelecer a organização da matéria médica e garantir a dispensa dos produtos prescritos. Grande parte das farmacopeias publicadas na Europa foi elaborada pelo Collegium Medicum de cada região do continente, formado por profissionais de medicina e de farmácia que, para além de produzir estas obras, agia como fiscalizador da prática curativa.

 

Em Portugal, o século XVIII é considerado o período áureo das farmacopeias, devido à extensa publicação de obras deste género, todas elas em língua vernácula e dirigidas exclusivamente aos boticários. A primeira delas redigida em português foi a Pharmacopea Lusitana (1704), produzida por D. Caetano de Santo António, boticário no Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra e mais tarde no de São Vicente de Fora em Lisboa. D. Caetano foi responsável, ainda, pela publicação de uma tradução, de latim para português, da Pharmacopea Bateana (1713), escrita pelo inglês Jorge Bateo, que foi protomédico de Carlos II, Rei de Inglaterra [3].

Após a reedição da Pharmacopea Tubalense, seguiu-se a publicação da Pharmacopea Portuense (1766), pelo cirurgião António Rodrigues Portugal, sendo a primeira a ser publicada na cidade do Porto. Na década seguinte foi publicada a Pharmacopea Dogmática Médico-Chimica e Theorico-Prática (1772), também na cidade do Porto, composta por dois tomos, escrita pelo frei-boticário e monge beneditino João de Jesus Maria, natural de Braga, administrador da botica do Mosteiro de Santo Tirso [5]. O terceiro tomo, igualmente da sua autoria, é uma obra única e singular, em formato manuscrito, nunca tendo sido publicada apesar de ter recebido autorizações para que tal acontecesse.

Nas décadas finais do século XVIII, foi publicada em Lisboa a Pharmacopea Lisbonense (1785), com uma reedição revista e aumentada em 1802 pelo boticário Manuel Joaquim Henriques Paiva, médico formado pela Universidade de Coimbra. Por fim, a Pharmacopeia Geral para o Reino e Domínios de Portugal (1794), também conhecida por Farmacopeia de D. Maria, a primeira farmacopeia oficial portuguesa segundo Alvará de 7 de janeiro 1794, redigida por Francisco Tavares, médico e físico-mor do Reino, a mando da Rainha D. Maria I [6], segundo os estatutos da Universidade de Coimbra de 1772, para “combater a desordem existente na confecção de especialidades farmacêuticas devido à falta de uma farmacopeia oficial que servisse para regular a necessária uniformidade das composições farmacêuticas nas Boticas do Reino e seus domínios” [7]. Esta obra foi, até 1835, a única referência legal sobre o modo como se deveria praticar farmácia em todo o Reino lusitano [8], tendo no entanto existido outras farmacopeias ditas não-oficiais como a Pharmacopea Chymica, Medica e Cirurgica, e também a Elementos de Pharmácia, ambas da autoria de António José de Sousa Pinto. Outra farmacopeia de referência foi a Pharmacopea Naval e Castrense (1819) de Jacinto da Costa, cirurgião do Hospital da Marinha [9] e da Armada Real, Examinador em Cirurgia Civil e em Farmácia Naval, Cirurgião-mor do Batalhão de Artilharia Nacional de Lisboa Ocidental [10]. Esta obra foi publicada para uso nos Hospitais Militares portugueses, à semelhança do que acontecia em outros países [11].

Em 1833, é publicada a Pharmacopea das Pharmacopeas nacionaes e estrangeiras, excepto a geral destes reinos, compilação de B.J.O.T. Cabral.

O Codigo Pharmaceutico Lusitano aprovado por Decreto de 6 de outubro de 1835, da autoria de Agostinho Albano da Silveira Pinto, médico e diretor da Real Escola Cirúrgica do Porto e da Academia Real de Marinha e Comércio, veio substituir a, então desatualizada primeira farmacopeia oficial portuguesa. Era igualmente conhecido por “Tratado de Pharmaconomia” e esteve em vigor até 1876.

 

Nomeada em 1838 uma Comissão composta por diversos profissionais de saúde para redigir uma nova farmacopeia oficial - a Farmacopêa Portugueza - muito embora esta só tenha sido publicada e aprovada por Decreto de 14 de setembro de 1876. Esteve em vigor até 1935, data em que foi substituída pela Farmacopeia Portuguesa.

 

As farmacopeias foram um reflexo do que se propunha como norma para a prática farmacêutica e médica, surgindo como referência de um período de notável significado na história das Ciências e das profissões sanitárias em Portugal [12].

 

[Texto elaborado pela equipa do Centro de Documentação Farmacêutica da Ordem dos Farmacêuticos]

[1] PITA, João Rui Rocha – História da Farmácia. Coimbra: Ordem dos Farmacêuticos; Secção Regional de Coimbra; Minerva, 1998, p. 155

[2] BASSO, Paula - A Farmácia e o Medicamento: uma história concisa. [Lisboa]: CTT Correios, 2004, p. 123

[3] GUERRA, F. Carvalho; ALVES, A. Correia – Breve notícia histórica sobre as farmacopeias portuguesas até ao século XIX. Lisboa: Academia das Ciências, 1986. p. 815-834 (Sep. de  História e desenvolvimento da ciência em Portugal, Vol. II), p. 818-820

[4] PITA, João Rui, org. e ed. lit. - Pharmacopea Lusitana: anno de 1704. Ed. fac-similada. Coimbra: Minerva, 2000, p. XVII

[5] GUERRA, F. Carvalho; ALVES, A. Correia - cit. 3, p. 823

[6] PITA, João Rui - cit. 4, p. XVII-XVIII

[7] Alvará de 7 de Janeiro de 1794

[8] GUERRA, F. Carvalho; ALVES, A. Correia - cit. 3, p. 824

[9] GUERRA, F. Carvalho; ALVES, A. Correia - cit. 3, p. 829

[10] COSTA, Francisco da – Pharmacopea Naval, e Castrense. Lisboa: Impressão Régia, 1819, p. [folha de rosto]

[11] GUERRA, F. Carvalho; ALVES, A. Correia - cit. 3, p. 829

[12] PITA, Rui João - Um Livro com 200 anos: a Farmacopeia Portuguesa (Edição Oficial). A publicação da primeira farmacopeia oficial: Pharmacopeia Geral (1794). Revista de História das Ideias [em linha]. Vol. 20, 1999 [visualizado em 2014-02-10], p. 47-100. Disponível em: http://rhi.fl.uc.pt/vol/20/jpita.pdf, p. 55

Foi neste contexto que se assistiu ao desenvolvimento de uma literatura destinada exclusivamente a este campo do saber. A produção de conhecimentos e teorias médico-curativas, associada ao descobrimento de novas plantas com propriedades medicinais, no Oriente e na América, criou a necessidade de uma reestruturação mais racionalizada da literatura médica, com destaque para os livros de farmácia, cujo principal estandarte foram as farmacopeias. Manuais de ensino sobre a prática farmacêutica, contendo informações sobre a fabricação de medicamentos e composições medicamentosas, a sistematização de diversos produtos da natureza utilizados na produção de remédios, além da finalidade curativa de cada um deles, as farmacopeias foram um símbolo da preocupação dos governos com a proteção da saúde [2].

Em 1716, João Vigier, droguista francês radicado em Lisboa e físico-mor de D. João V, publicou a Pharmacopea Ulyssiponense Galênica e Chimica, reflexo dos anos de trabalho com o químico francês Nicolas Lemery [4]. Durante várias décadas foi uma referência em Portugal sobre o ensino de como produzir medicamentos químicos. Outra grande referência foi a Pharmacopea Tubalense Chimico-Galénica, publicada em Coimbra no ano de 1735, pelo boticário da Corte Manoel Rodrigues Coelho, natural de Setúbal, daí o nome atribuído à farmacopeia.

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